Entrevista transcrita de "A voz da verdade"
Duas semanas depois da visita de Bento XVI a Portugal, a VOZ DA VERDADE quis saber como o mundo viu a viagem apostólica do Santo Padre ao nosso país. Numa entrevista por e-mail, o vaticanista Jean-Marie Guénois, do jornal francês ‘Le Figaro’, acredita que a viagem vai ficar na história do papado como um ponto de viragem do pontificado e garante que “algo aconteceu em Portugal e em Fátima, em particular”.
Que balanço faz da visita de Bento XVI a Portugal?
Vejo esta viagem apostólica como um resumo do seu Papado e da Igreja! Na prática, esta viagem marca uma recuperação no pontificado de Bento XVI. Mas não é uma recuperação artificial nem técnica, tal como a recuperação dos preços das acções, mas uma recuperação baseada na verdade. A verdade da grandeza da dimensão da Igreja. Ela não pode ser resumida num escândalo de padres pedófilos. A Igreja é um povo, e os portugueses demonstraram-no muito bem. Um povo liderado por padres, bispos e pelo Papa, que são fundamentalmente os servidores do povo. E isso foi visível durante esses quatro dias. E todos são animados pela fé, esperança e caridade nessa ocasião. Os portugueses trouxeram o Papa e Bento XVI foi trazido pelos portugueses. Foi a Igreja! No fundo, Bento XVI deu nos seus discursos um resumo do seu pensamento e do seu pontificado: o cristianismo atraído pelo exemplo, e não pelos discursos; proposto e não imposto; em que os cristãos são missionários de Cristo e não de uma ideologia; por isso devemos deixar as ideologias e conciliar a fé e a razão.
Qual o momento que definiria como o mais marcante desta viagem e porquê?
Penso numa imagem, para mim a mais forte de toda a viagem: quando Bento XVI ofereceu uma rosa a Nossa Senhora de Fátima. Isto pode parecer ridículo e infantil, mas foi em Fátima que a mais bela espiritualidade da Igreja apareceu, em plena luz do dia. A espiritualidade da criança que sabe que deve tudo a Deus. Escolhi este exemplo porque tive o privilégio de estar a poucos metros do Papa e fiquei impressionado – tocado até – com a simplicidade da sua meditação. Parecia uma criança que trouxe um presente para a sua mãe. Nada existia à sua volta, nem câmaras de televisão, nem a multidão, nem mesmo o estatuto de Papa. Ali, era um grande cristão, humilde, que parecia falar com ‘alguém’ que estava realmente presente. Estas são coisas que normalmente não descrevemos no nosso trabalho como jornalistas, mas, desta vez, o mistério foi ‘palpável’. Nesse sentido, essa imagem resume toda a viagem: o poder da fé, a força de Fátima e a simplicidade humana que fala mais que palavras, porque a fé fala directamente ao coração. É realmente a mensagem chave, fundamental para a fé cristã.
Surpreendeu-o a recepção, e mesmo o carinho, dado pelos portugueses ao Santo Padre?
Não, de todo, porque estávamos num país maioritariamente de cultura católica. Mas o que me surpreendeu foi ver a densidade do afecto dos portugueses para com o Papa. Nós [vaticanistas] sentimos que esse afecto era sólido. E chama-se fidelidade, acredito eu, contra todas as probabilidades, sem grandes discursos, mas através de actos concretos. Que lição e que dignidade!
Qual terá sido a importância deste acolhimento para o pontificado de Bento XVI? Vários especialistas internacionais consideram mesmo que a peregrinação a Portugal abriu uma nova etapa neste pontificado…
Longe de mim querer ‘reduzir’ a viagem à crise de pedofilia na Igreja. Mas o facto é que esta viagem a Portugal – graças à mobilização dos portugueses –, marca uma ruptura na história dessa triste polémica mundial. Não terá sido no avião que o levou para Lisboa – onde Bento XVI convidou a Igreja a assumir a sua própria responsabilidade e nem sempre a culpar o mundo exterior – mas especialmente na missa de 13 de Maio, em Fátima, onde estiveram meio milhão de fiéis e a diferença foi feita. Eles ‘votaram com os pés’, como se diz em França, para dizer que a Igreja não era a crise de pedofilia e que o Papa estava longe de estar isolado. Isso impressionou em França e mudou a imagem do Papa. De facto, escrevi um artigo intitulado ‘Le rebond de Benoît XVI’ (‘A recuperação de Bento XVI’). Mas confesso que não foi percebido dessa forma se não fosse a mobilização do povo português.
Parece-me que esta viagem vai ficar na história do papado como um ponto de viragem. Ela não marca o fim da crise dos padres pedófilos, mas o fim da dúvida. E fez voltar a Igreja Católica ao essencial, que é composto principalmente pelos fiéis e pelos seus sacerdotes e bispos. Uma Igreja que não pode ser reduzida a alguns sacerdotes desviantes.
A mensagem do Papa em Portugal teve impacto mundial? Quais foram os ecos desta visita na imprensa internacional?
O impacto foi mundial, sem dúvida, precisamente por causa do contexto e da capacidade de resposta do povo português. Não podemos dizer que a multidão não foi ao encontro em Fátima! No fundo, o apelo à missão dos cristãos na sociedade lançado por Bento XVI em Portugal parece-me algo completamente inédito na sua intensidade. Não é como um retorno ao passado, mas como uma redescoberta da alegria dos primórdios do cristianismo. Não surge como uma imposição, mas como uma proposta. Não é uma luta sem inteligência contra as forças da razão, mas uma reconciliação com as forças da razão. É assim o pontificado de Bento XVI. Quase que se poderia dizer que a mensagem desta viagem é uma versão condensada do seu pontificado. E o impacto global da mensagem é que se está a fazer justiça para com o seu pontificado, na sua verdadeira dimensão, e não na sua caricatura.
Acredita que mudou a imagem que o mundo tem de Bento XVI depois da visita a Portugal?
Sim, a imagem mudou para o público em geral, mesmo que ainda existam pessoas que não ‘querem’ ver o óbvio. Mas o que é mais impressionante é, mais uma vez, ver que a força da imagem de Bento XVI é precisamente não ‘fabricar’ uma imagem artificial. Se olharmos atentamente para as coisas como elas são produzidas, vemos um Papa humilde, simples, verdadeiro e inteligente, que cativou Portugal. Esta não é uma imagem. É ele, como ele é. E, pela primeira vez – mas acho que isso só foi possível porque se sentiu ‘tocado’ pela mobilização dos portugueses –, foi a sua verdadeira imagem que passou. Sem a mobilização dos fiéis nas ruas, a caricatura do Papa teria ficado. A mobilização tem aberto as portas para o público global, que foram fechadas com a crise dos padres pedófilos. Basicamente, este lado revelou a verdadeira face da Igreja e, portanto, o verdadeiro rosto do Papa. Obrigado Portugal! Não o digo por demagogia barata, mas como algo muito pessoal. Quando trabalhamos há meses sobre esta notícia sórdida da pedofilia e depois vemos a força do testemunho do povo português, isso também nos faz bem a nível profissional. Esta não é uma concessão, mas uma observação subjectiva de um jornalista objectivo: algo aconteceu em Portugal e em Fátima, em particular.