"Como ele sempre dissera: o rio e o coração, o que os une? O rio nunca está feito, como não está o coração. Ambos são sempre nascentes, sempre nascendo. Ou como eu hoje escrevo: milagre é o rio não findar mais. Milagre é o coração começar sempre no peito de outra vida."
Mia Couto in A chuva Pasmada
A Chuva Pasmada, de Mia Couto, conta a estória de uma chuva que está suspensa no ar, porque indecisa entre o Céu e a Terra. Mas mais que isso, trata-se da história de vidas pasmadas. O narrador-personagem, um menino tido por seus pais como “lento no fazer, demorado no pensar” (COUTO, 2004, p. 07), irmana-se com essa chuva.
No prefácio do livro podemos observar a importância do repassar da experiência pelos mais velhos:
Ante o frio, faz com o coração o contrário do que fazes com o corpo: despe-o. Quanto mais nu, mais ele encontrará o único agasalho possível – um outro coração. (COUTO, 2004)
O avô aconselha, indica uma direcção dada pela sua experiência. A ideia-chave para este dizer do avô é: pasmaceira. Não a da chuva, parada entre céu e terra, negando a sua natureza de cair, mas a das pessoas, a dos corações.
O estado de pasmaceira realiza-se na chuva assim como no menino. Mas está também sobre o pai do narrador-personagem, que não cumpre a sua função de homem, não trabalha mais, apenas dorme: “O fundo da terra levara o meu pai de mim, sem o levar da vida” (COUTO, 2004, p. 14); está no avô, que já se deveria ter deixado levar ao mundo dos mortos, mas não tinha coragem de morrer: “Quando eu era menino, cheio de vida, eu sabia morrer. Agora, que já vou pra despedida, esqueci como se morre”, está na tia, que permaneceu solteira e sem filhos para muito além do tempo conveniente às mulheres da aldeia: “A tia amadurecera sem o calor de homem, noivo, marido. Não se contemplam tais adiamentos nestes nossos lugares” (COUTO, 2004, p. 17).
Assim, podemos encontrar toda uma família em estado pasmado, contrariando o que seria de bom senso para comunidade a que pertence, desnaturando-se, como a chuva que se suspendeu no ar. Cada integrante da família tem uma questão específica a resolver, alguma questão que se arrasta e que depende de alguma acção para se desfazer.
O próprio título do livro já anuncia o conflito estabelecido. Ao longo do livro vamos encontrando pistas que irão identificar o quão pasmadas estão não só a vida das pessoas, mas da comunidade em geral. Existe, porém, grande dificuldade em identificar os motivos para tal desequilíbrio, uma vez que há muitos factos desarmonizantes na sociedade que irão aparecendo ao longo da narrativa.
Em Chuva Pasmada, Mia Couto, descreve uma realidade vivida hoje em África de língua portuguesa, onde a sociedade encontra-se em pleno estado de pasmaceira, mas ao lê-la vi muito para além de África e diria que é quase um tratado sobre todos nós, em todo o mundo. A narrativa aponta diversos motivos: a perda da identidade, a valorização da cultura do colono e, principalmente, a desistência da luta. O conflito resolve-se com o equilíbrio de toda a família, na tia que é perdoada, no avô que se deixa partir, no pai que abandona o seu estado vegetativo, na mãe que recupera sua família, mas principalmente no menino, a nova geração, que vê resgatado o seu caminho.
Eu deixei-me pasmar...