A melhor maneira de viajar é sentir

A minha animadora viaja hoje para a Terra Santa, juntamente com um grupo de peregrinos.
Gostava muito de poder ir com eles, não indo, desejo-lhes a melhor viagem!

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

Álvaro de Campos

Vim porque me pagavam

Chegou-me por uma amiga no Facebook, não conhecia, invadiu-me na frontalidade e arrasou com qualquer preconceito que se possa ter...  os refugiados, emigrantes e imigrantes não são nem ignorantes nem vêm ou vão à procura do paraíso na terra, vêm ou vão porque lhes pagam e porque precisam de ajuda, muitas vezes, apenas, para sobreviver.

Golgona Anghel é romena, mas escreve em Português. Poesia.
Os versos que se seguem estão no seu segundo livro, recentemente publicado.

VIM PORQUE ME PAGAVAM

Vim porque me pagavam
e eu queria comprar o futuro a prestações.
Vim porque me falaram de apanhar cerejas
ou de armas de destruição em massa.
Mas só encontrei cucos e mexericos de feira,
metralhadoras de plástico, coelhinhos de Páscoa e pulseiras
de lata.

A bordo, alguém falou de justiça
(não, não era o Marx).
A bordo, falavam também de liberdade.
Quanto mais morríamos,
mais liberdade tínhamos para matar.
Matava porque estavas perto,
porque os outros ficavam na esquina do supermercado
a falar, a debater o assunto.Com estas pernas subi dez andares
para assim te poder olhar de frente.
Alguém se atreve ainda a falar de posteridade?
Eu só penso em como regressar a casa:
e que bonito me fica a esperança enquanto apresento em directo
a autópsia da minha glória.

GOLGONA ANGHEL, in VIM PORQUE ME PAGAVAM (Mariposa Azul, 2011)

Senhor, que conheces o mais profundo do meu coração e me amas, peço-te a graça da disponibilidade e da acção do Espírito em mim.

Faz com que cada dia me deixe purificar de tudo o que me fech

a no meu egoísmo,
e impede o meu caminho até à liberdade de filho de Deus.
Ajuda-me, Senhor, para que os meus olhos se façam misericordiosos

e não suspeitem nem julguem ninguém pela sua aparência,mas aprendam a ver a beleza do coração do irmão.

Ajuda-me, Senhor, para que o meu ouvido se faça misericordioso
Ajuda-me, Senhor, para que a minha língua se faça misericordiosa e tenha palavras de consolo.
Ajuda-me, Senhor, para que as minhas mãos se façam misericordiosas e cheias de boas acções...
Ajuda-me, Senhor, para que o meu coração se faça misericordioso, e possa sentir o sofrimento dos nossos irmãos.
oração para os refugiados in blogCVX de VALLADOLID

Recomeço, porque a Tua mão direita me sustenta.

Existe uma personagem da mitologia grega, Sísifo tido como o mais astuto de todos os mortais, conta-se que enganou a Morte duas vezes, e como castigo, Sísifo foi condenado a empurrar, para toda a eternidade, uma grande pedra de mármore com as suas mãos até  ao cimo de uma montanha, sendo que toda vez que ele está quase alcançar o cimo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até ao ponto de partida através de uma força irresistível. Por esse motivo, todas as tarefas que envolvem esforços inúteis passaram a ser chamadas "Trabalhos de Sísifo".Tratava-se de um castigo para mostrar que os mortais não tinham a liberdade dos deuses. 

Sobre Sisifo, escreveu Miguel Torga:

Recomeça…
Se puderes,
Sem angústia e sem pressa.

E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro,
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcancesNão descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo
Ilusões sucessivas no pomarE vendo
Acordado,
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucuraOnde, com lucidez, te reconheças.

A condição humana faz de nós mestres do recomeço, todos nós, mesmo os que não o pensam ou não o sentem. A grande diferença que o Cristianismo traz em relação à história de Sisifo, é que quando recomeço, já recomeço a um nível superior e já não volto atrás. A acrescer a isso a mais valia que nos é trazida por Santo Inácio, é a da avaliação permanente para um melhor recomeço, é o da suspeita permanente que nos obriga a exercitar mente e alma, numa constante busca de um melhor caminho, não como mais cómodo ou mais delicado, tipo, alcatifado por oposição a uma qualquer calçada portuguesa, mas como o Caminho que nos conduz a Deus.

Este Caminho, não é necessariamente mais fácil, e nele não existem atalhos ou corta-matos, ele é comprido, tem pedras, pedrinhas, umas mais visíveis que outras, umas mais brilhantes que outras, mas como dizia Fernando Pessoa “pedras no caminho.... apanho-as todas.... um dia posso vir a construir um castelo!”

Estamos sempre a recomeçar, e o sol todos os dias nasce... mas para um melhor recomeço, é essencial o discernir, o avaliar e o preparar cada novo começo. Mas examinar não é só ver erros para os corrigir, mas também e sobretudo ver o que está bem para agradecer e progredir. Chegamos ao fim de mais um dia, mais um mês, mais um ano, e podemos tirar lições desta nossa história, com estórias dentro, para tentarmos saber quais os novos passos a dar no próximo dia, no próximo mês e no próximo ano, não como um exercício de negatividade, com auto-comiseração e flagelo à mistura, mas como um exercício de liberdade que nos empurra para um melhor conhecimento de nós, das nossas fragilidades, dos nossos medos, juntamente com os nossos dons, pontos fortes e graças.

Que o Espírito Santo nos ilumine para que com liberdade consigamos avaliar o ano que passou e com realismo lançarmos as pontes para o novo ano que se avizinha. 

Porque Tu és o meu auxílio,
e à sombra das Tuas asas eu exulto.
A minha alma está unida a Ti,
a tua mão direita me sustenta. 

Sl 63, 8-9

Fala-me de Deus!

Disse à amendoeira: fala-me de Deus!
E a amendoeira floriu.
Disse ao pobre: fala-me de Deus!
E o pobre ofereceu-me a sua casa.
Disse ao sonho: fala-me de Deus!
E o sonho fez-se realidade.
Disse à casa: fala-me de Deus!
E abriu-se a porta.
Disse à natureza: fala-me de Deus!
E a natureza cobriu-se de formosura.
Disse ao amigo: fala-me de Deus!
E o amigo ensinou-me a amar.
Disse ao rouxinol: fala-me de Deus!
E o rouxinol pôs-se a cantar.
Disse a um guerreiro: fala-me de Deus!
E o guerreiro depôs as armas.
Disse à fonte: fala-me de Deus!
E a água brotou.
Disse à minha mãe: fala-me de Deus!
E a minha mãe deu-me um beijo na fronte.
Disse à mão: fala-me de Deus!
E a mão converteu-se em serviço.
Disse ao inimigo: fala-me de Deus!
E o inimigo estendeu-me a mão.
Disse à voz: fala-me de Deus!
E a voz não encontrou palavras.
Disse à Bíblia: fala-me de Deus!
E a Bíblia cansou-se de tanto falar.
Disse a Jesus: fala-me de Deus!
E Jesus ensinou-me o Pai Nosso.
Disse, temeroso, ao sol poente: fala-me de Deus!
E o sol ocultou-se sem nada dizer.
Mas, no dia seguinte, ao amanhecer, quando abri a janela,
ele voltou a sorrir-me.

(Miguel Estradé)

Em silêncio descobri essa cidade no mapa

Em silêncio descobri essa cidade no mapa
a toda a velocidade: gota
sombria. Descobri as poeiras que batiam
como peixes no sangue.
A toda a velocidade, em silêncio, no mapa -
como se descobre uma letra
de outra cor no meio das folhas,
estremecendo nos olmos, em silêncio. Gota
sombria num girassol. -
essa letra, essa cidade em silêncio,
batendo como sangue.Era a minha cidade ao norte do mapa,
numa velocidade chamada
mundo sombrio. Seus peixes estremeciam
como letras no alto das folhas,
poeiras de outra cor: girassol que se descobre
como uma gota no mundo.
Descobri essa cidade, aplainando tábuas
lentas como rosas vigiadas
pelas letras dos espinhos. Era em silêncio
como uma gota
de seiva lenta numa tábua aplainada.Descobri que tinha asas como uma pêra
que desce. E a essa velocidade
voava para mim aquela cidade do mapa.
Eu batia como os peixes batendo
dentro do sangue - peixes
em silêncio, cheios de folhas. Eu escrevia,
aplainando na tábua
todo o meu silêncio. E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol, no mapa
do mundo. Na sombra do sangue, estremecendo
como as letras nas folhas
de outra cor.Cidade que aperto, batendo as asas - ela -
no ar do mapa. E que aperto
contra quanto, estremecendo em mim com folhas,
escrevo no mundo.
Que aperto com o amor sombrio contra
mim: peixes de grande velocidade,
letra monumental descoberta entre poeiras.
E que eu amo lentamente até ao fim
da tábua por onde escorre
em silêncio aplainado noutra cor:
como uma pêra voando,
um girassol do mundo.

Herberto Helder
Impressiona-me sempre o que posso descobrir no silêncio e o que os outros descobrem nele. O poema, oscila entre um silêncio lento e calmo e um silêncio veloz e furioso, o que tem graça, por ser assim que vejo os meus movimentos interiores... vai de um silêncio rastejante a um silêncio voador, com asas, que nos permite o gozo da liberdade, no seu expoente máximo...
Agora nos meses da silly season, é de aproveitar este dom extraordinário que temos, de poder ouvir o nosso silêncio, e nele descobrir cidades no nosso mapa.
Dá pano para mangas, se o quiserem rezar... eu gostei...